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Ideias Não Tem Cor

Em uma nova produção do Lar da Cultura POP, dedicado a um dos períodos mais obscuros da história nacional, a Escravidão. Mas, não estamos aqui para falar do que todos já sabem, sobre dor e sofrimento, mas sobre esperança, e acima de tudo, o poder do conhecimento.

Durante o período escravista brasileiro, um editor de folhetins e sua esposa iniciam um plano ousado: ensinar secretamente crianças escravizadas a ler e escrever, para que possam assinar, mesmo anonimamente, as palavras que mudariam o mundo. Em um tempo onde cor significava limite, eles provaram que o pensamento é livre.

Uma história sobre coragem, conhecimento e o poder das ideias. O conhecimento é algo que ninguém pode tirar de você, e é capaz de superar qualquer diferença, racial, social ou condicional. Leia sem pressa, e ao final, não se esqueça de comentar sua opinião sobre o conto, sem mais delongas, bora começar!

criança negra lendo

(Ideias Não Tem Cor)

Capítulo 1: O Quebrar das Correntes

mãos atadas

O ano era 1845, e a escravidão ainda era uma realidade brutal no Brasil, o maior país da América do Sul. As famílias mais ricas podiam possuir dezenas de escravos, homens e mulheres arrancados à força de seus lares, trazidos a uma terra desconhecida para viver sob condições sub-humanas, privados de liberdade e dignidade até o fim de suas vidas.

Os poderosos difundiam ideais eugenistas, alegando que a ciência comprovaria a superioridade de sua raça, como se a submissão dos negros fosse parte natural da ordem das coisas, uma massa de manobra a serviço dos “superiores”. Mas nenhuma teoria distorcida era capaz de combater a verdade. E não existe verdade maior do que o coração puro de uma criança.

Maria, uma menina de 11 anos, corria pelos campos que cercavam a casa de seus pais. Trazia junto ao peito seus livros preferidos, ansiosa por sua primeira aula do dia. O pai, um respeitado editor de folhetins, e a mãe, filha de um barão do açúcar, pertenciam a uma das famílias mais tradicionais da região. Ainda assim, o editor recusava-se a permitir que sua filha crescesse apenas como um objeto decorativo à espera de um marido. Ele queria que Maria soubesse pensar, como ele e sua esposa puderam.

No escritório da casa, a professora já a esperava. Catarina era uma negra liberta, por volta dos vinte anos, educada por sua antiga patroa, uma devota cristã que acreditava que Jesus jamais aprovaria a divisão entre seres humanos. Por isso, ensinou Catarina como ensinaria uma filha.

Naquela época, uma ex-escrava ensinando dentro de um lar branco seria motivo de escândalo. Mas Benedito sabia como fazer o certo sem chamar atenção.

Maria abriu seus livros, mas ao olhar pela janela, viu três meninos, filhos de escravizados, brincando no quintal. Com inocência, perguntou por que eles não estavam aprendendo com ela. Catarina hesitou, tentou responder, mas desistiu. Em vez de explicações, ofereceu uma solução.

Maria correu até a janela e os chamou. Apesar da hesitação, os meninos se aproximaram. Catarina os recebeu com um sorriso, e ensinou a todos igualmente. Maria, mesmo tão jovem, demonstrava uma empatia que os adultos costumavam desprezar. Para ela, não havia diferença entre si e aqueles meninos.

Enquanto isso, cruzando os campos da fazenda, uma carroça puxada por três cavalos brancos trazia dois homens, igualmente ricos e influentes, mas completamente distintos em essência. Benedito, o editor, com cabelos e barba negras, vestia roupas simples. José, o coronel, mais velho e grisalho, trajava paletó sob medida e não tirava o chapéu nem dentro de casa.

Ambos vinham de origens semelhantes, mas escolheram caminhos distintos. Benedito possuía escravos, mas evitava adquirir novos e os tratava como gente. Sua fazenda era menos produtiva, mas ele se orgulhava disso. Já José via os escravizados como engrenagens, exigia o máximo de produtividade, sem qualquer humanidade.

— Isso aqui está definhando, Benedito, comentou José, observando as terras do amigo com desdém.

— Eu não vivo para o trabalho, Coronel. O que tenho já basta, respondeu o jornalista, disfarçando sua repulsa com uma falsa arrogância.

Ele sabia que precisava parecer um deles para continuar fazendo o bem em segredo.

Após a visita, Benedito agradeceu a Deus por se livrar daquela companhia e retornou para casa. Lá, foi recebido com um beijo por sua esposa, Luzia, mulher de olhar suave, sorriso luminoso e cabelos negros como tinta fresca. O conforto do gesto durou pouco: ele logo se trancou no escritório.

Ao abrir a porta, viu algo que o surpreendeu: além de Maria, estavam ali os três meninos. Catarina, nervosa, tentou dispensá-los, mas Benedito impediu. Apenas pegou suas coisas, sorriu e disse que poderiam usar a sala pelo tempo que quisessem.

Voltou ao seu quarto, mas sua mente já estava em chamas. Diante de tantas páginas em branco, uma ideia nascia. Uma ideia que poderia libertar não apenas os corpos, mas também as almas.

Quando Luzia o procurou, viu o brilho nos olhos do marido.

Capítulo 2: Um Plano de Liberdade

criança negra

Benedito por hora não disse a sua amada o que tinha em mente, apenas lhe garantiu que seria algo grandioso. Ele passou a noite em claro pensado em possibilidades, em como ele usaria o conhecimento para libertar aquelas crianças. Ele não poderia libertar seus pais, mas poderia dar um futuro digno a seus filhos.

A manhã nasceu, e Benedito, exausto, foi a mesa com sua esposa. Luzia, perceptiva, percebeu que havia algo diferente.

Ele respirou fundo e compartilhou tudo: sobre as crianças, sobre o momento que presenciara, sobre a faísca de uma revolução que poderia começar ali mesmo, em sua propriedade, com livros e lápis em vez de armas.

Luzia ouviu em silêncio, como quem saboreia uma esperança rara. E então, sem hesitar, decidiu unir-se a ele naquele plano.

Foi ela quem sugeriu a aproximação com Cecília, uma das escravas mais respeitadas da fazenda. Cecília era diferente. Tivera uma antiga senhora que, antes de falecer, lhe ensinara a ler e escrever, assim como Catarina, um crime aos olhos da elite, mas um milagre aos olhos dela. Era firme, mas generosa, e cuidava de seu Cosme como se soubesse que ele nascera para algo maior, e por isso, lhe deu o nome de seu Santo de devoção.

O plano de Benedito era semelhante ao feito pela senhora de Cecília, mas que sem dúvida, seria muito mais complexo.

João, seu marido, era o oposto: calado, rude nos gestos, moldado por anos de servidão e ausência de oportunidades. Um homem forte, mas aprisionado pela ignorância imposta pela realidade em que foi obrigado a crescer e viver o resto da vida.

Benedito os reuniu discretamente, junto com Luzia e Catarina. Expôs o plano, com cuidado para não parecer apenas caridade ou vaidade. Ele desejava construir algo coletivo, transformador.

Por anos, ele leu Voltaire, John Locke, Luís Gama, José Bonifácio, homens que escreviam sobre as liberdades individuais, e ele percebeu que ela passa principalmente pelo conhecimento, e naquela realidade, era a única forma de libertar aquelas pessoas, naquele momento, ele tornaria a teoria, realidade.

Cecília enxergou ali a oportunidade que jamais tivera por completo. Estava decidida a permitir que seu filho aprendesse, escrevesse e se libertasse por dentro. João não compreendia todos os detalhes, mas confiou. Seus olhos, mesmo marejados, revelavam algo raro: esperança.

A sala de aula foi montada nos fundos do casarão, disfarçada como um depósito de papéis velhos. Catarina recebeu todos os materiais, reorganizou os horários de Maria e passou a ensinar durante a noite, quando o movimento era menor e os olhares menos atentos.

Brancos e negros sentavam-se lado a lado. Maria ajudava Cosme com o alfabeto. Catarina recitava poemas e alfabetizava com o mesmo fervor com que buscava justiça em cada lição.

Benedito, atento, observava tudo. Em sua mente, os textos que aquelas crianças escreveriam não ficariam escondidos. Ele planejava publicá-los em seu jornal, com pseudônimos, evitando o peso do preconceito que ainda pairava sobre qualquer palavra que viesse de mãos negras, e também, livrar a pele dele e sua família dos problemas que isso traria.

Seriam ideias puras, legítimas, que entrariam pelas portas da elite sem que percebessem sua origem. Somente assim, talvez, admitiriam que ideias não têm cor.

Capítulo 3: O Farol do Conhecimento

poeta escrevendo

Os anos passaram voando. As crianças que antes nem imaginavam conseguir escrever o próprio nome, agora eram jovens instruídos.

Catarina, dedicada e incansável, via seus alunos ultrapassarem o ensino tradicional. Cosme, em especial, revelava-se um prodígio, dominava a linguagem como se tivesse nascido entre livros, e não no terreiro da senzala.

Enquanto o saber florescia dentro da sala oculta, do lado de fora a realidade se impunha com dureza. A fazenda de Benedito começava a ruir lentamente. Sem a antiga mão de obra escravizada, e com os poucos trabalhadores agora buscando alforria ou melhores condições, as lavouras minguavam. O lucro evaporava. As dívidas cresciam. A propriedade que antes sustentava seu jornal e suas ideias começava a dar sinais de colapso.

Foi nesse cenário que o coronel José reapareceu. Com seu sorriso cínico e discurso sobre “restaurar a ordem”, ofereceu-se mais uma vez para comprar a fazenda. Prometia fazê-la “funcionar” com seu método de trabalho brutal, que enchia as valas em volta de sua fazenda com cadáveres.

Benedito recusou, deixando José furioso, chamando-o de imbecil, o suficiente para morrer abraçado com suas convicções.

Ao saberem da situação, os alunos tomaram uma decisão. Pela primeira vez, todos eles, brancos e negros, meninos e meninas, se uniram para oferecer algo em troca do que haviam recebido. Trabalhariam gratuitamente para Benedito, escrevendo, revisando, ajudando na diagramação e distribuição do jornal. Não como servos, mas como colaboradores conscientes. O gesto era puro, mas não passou despercebido.

Catarina, ao ver o esforço das crianças sendo canalizado para salvar a fazenda, confrontou Benedito. Acusou-o de se aproveitar do trabalho dos alunos, mesmo que de forma indireta. Questionou sua integridade, a linha tênue entre libertação e exploração. Benedito não respondeu. Apenas silenciou, mergulhado em dúvidas, sentindo o peso das palavras que, pela primeira vez, lhe pareciam armas contra ele. Ela sentia como se durante todo aquele tempo, estava simplesmente dando uma mão de obra especializada, para continuar vivendo como vassalos.

Benedito estava a beira de um ataque nervoso, sem conseguir responder, mas por sorte, seus jovens deram a resposta por ele.

Cosme, liderando um pequeno grupo, criou a seção “Poesia Anônima”. Sem nomes, sem rostos, apenas versos. Textos sobre amor, dor, esperança e liberdade. Poemas que tocavam o coração de qualquer leitor, independentemente de sua origem. O impacto foi imediato. Cartas começaram a chegar de todos os cantos do país, elogiando a beleza e profundidade das palavras publicadas.

O jornal de Benedito voltou a crescer. As vendas dispararam. O prestígio retornou. Agora com recursos, ele pôde enfim contratar trabalhadores livres ,imigrantes italianos e alemães que chegavam ao Brasil em busca de oportunidade. Pagou-lhes de forma digna, honrando o novo tempo que ajudava a construir.

Catarina, ao perceber que os jovens haviam decidido livremente contribuir, e que a oportunidade se ampliara a outros trabalhadores livres, fez as pazes com sua consciência. Entendeu que, naquele contexto, a educação havia gerado uma aliança verdadeira, não uma troca desigual.

E assim, numa pequena fazenda do interior, palavras provaram ser mais poderosas que correntes.

O Correio da Poesia tornou-se um dos maiores jornais de São Paulo, não apenas por seus grandes escritores e jornalistas, mas especialmente por seus autores anônimos, que no imaginário popular, buscavam simbolizar que qualquer um pode fazer poesia, o que não deixava de ser verdade, mas seu propósito, ainda iria além disso.

Além de escritores, alguns tornaram-se críticos, pensadores, e até mesmo investigadores, e seria através de Cosme, que um homem injusto, enfim seria punido por seus atos.

Capítulo 4: Mãos Unidas Para o Futuro

mãos dadas

O tempo, sempre implacável, levou Cecília primeiro. Partiu com o rosto sereno, ciente de que seu filho havia trilhado um caminho impensável décadas antes. João a seguiu pouco tempo depois, calado como sempre fora, mas com um brilho orgulhoso nos olhos. Ambos descansaram em paz, certos de que o futuro havia sido reescrito por suas mãos calosas e pelas palavras que agora voavam longe.

Cosme tornou-se um homem admirado, firme, de fala forte e mente afiada. Jornalista investigativo, decidiu atuar de forma autônoma, livre de censuras e amarras. Sabia bem quem era seu maior alvo. Disfarçado entre papéis, recibos e documentos esquecidos, descobriu fraudes profundas nas contas do coronel José. A denúncia foi fulminante. O homem outrora temido caiu em desgraça, preso por corrupção. Sua fazenda foi abandonada, manchada pela vergonha. A família fugiu da região em silêncio.

Com o local à deriva, Benedito fez o impensável: comprou a fazenda por uma fração de seu valor. Junto dela, vieram os últimos escravos que ali permaneciam. Mas não para o trabalho forçado, e sim para serem libertos e, mais do que isso, incluídos. A fazenda agora serviria como extensão do projeto educacional que crescera em segredo. Pela primeira vez, crianças negras e brancas, filhas da antiga senzala e da elite decadente, aprenderiam juntas sob o mesmo teto.

A velhice chegou para Benedito como um sopro. Envelheceu com o coração leve, ainda que o corpo se curvasse. Sabia que deixaria algo maior que si mesmo. Quando partiu, deixou tudo nas mãos de sua filha, Maria. A menina curiosa que, desde pequena, observava as aulas escondida pela fresta da porta, agora guiaria aquele legado com firmeza e sensibilidade. Inspirada pelo pai, pela mãe Luzia e pela força das histórias que crescera ouvindo, fez da união entre brancos e negros não uma exceção, mas uma regra.

O projeto educacional se consolidou como exemplo nacional. Poemas, artigos e investigações produzidas por jovens talentos ecoavam em jornais distantes. Os nomes dos autores permaneciam ocultos em muitos casos, não por medo, mas por decisão coletiva. O anonimato agora era um ato de resistência, uma forma de provar que talento e inteligência não têm cor.

Ao final de sua vida, Maria reuniu as memórias deixadas pelo pai. E em um dos últimos exemplares do jornal que agora dirigia, publicou uma homenagem singela:

"A todos que escreveram com a alma e lutaram com a pena. A todos que romperam os grilhões com palavras, não com aço. Este legado pertence a todos nós."


Na última página, nomes surgiram, um por um:

  • Princesa Isabel, que assinou a liberdade mesmo entre pressões da aristocracia.

  • José Bonifácio, que antes da independência já sonhava com a abolição.

  • Maria Firmina dos Reis, que deu voz literária aos silenciados.

  • André Rebouças, engenheiro e abolicionista incansável.

  • Luís Gama, advogado negro que libertou centenas com a própria retórica.


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Gabriel Germano
Gabriel Germano
há 3 dias
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